Onde situar Delfim Netto no pensamento econômico?
É dificílimo o enquadramento do economista em alguma corrente, escreve Luiz Alberto Machado. Com o falecimento do professor Antônio Delfim Netto no dia 12 de agosto, recebi uma série de questionamentos sobre seu enquadramento na história do pensamento econômico, algo compreensível em tempos de polarização, quando as pessoas ficam sedentas de rótulos. A rigor, não é fácil enquadrá-lo numa determinada escola ou corrente de pensamento econômico, assim como não o é para qualquer personagem que, a exemplo de Delfim Netto, vestiu diferentes chapéus, entre os quais o de professor, pesquisador, secretário estadual, ministro em diferentes pastas, embaixador, consultor e deputado federal. Antes, porém, de me referir ao professor Delfim Netto e outros economistas brasileiros, gostaria de apresentar um breve panorama do pensamento econômico liberal. Referências sobre economistas liberais, quando feitas, costumam incluir Adam Smith, Thomas Malthus, David Ricardo e Jean-Baptiste Say entre os clássicos; às vezes John Stuart Mill e Alfred Marshall, entre os neoclássicos; e, entre os mais recentes, o monetarista Milton Friedman, da Escola de Chicago, e Friedrich Hayek, da Escola Austríaca. Neste artigo, vou focalizar quatro outros grandes economistas liberais que deram contribuições importantes para a evolução do pensamento econômico. São eles Ronald Coase, Gary Becker, James Buchanan e Douglass North. Coase foi determinante na análise dos direitos de propriedade para a estrutura institucional e o funcionamento da economia, dando especial ênfase aos custos de produção e às externalidades. As externalidades têm impactos negativos ou positivos que um determinado agente econômico sofre, decorrente das ações de outros agentes econômicos como as famílias, as empresas, os governos e o resto do mundo, que geram custos privados ou custos sociais, ou benefícios para outro agente econômico e para a sociedade. Becker, dotado de enorme dose de originalidade e criatividade, aplicou a teoria e métodos econômicos a diferentes áreas entre as quais o crime, a educação e os relacionamentos interpessoais, sempre na perspectiva liberal, ampliando consideravelmente o campo de atuação dos economistas. Buchanan, com a teoria da escolha pública, examinou a complexa relação entre a economia, o direito e a política, destacando os riscos decorrentes de déficits sistemáticos e propondo limites constitucionais à ação dos governos. North, por fim, mostrou a relevância das instituições para o desenvolvimento, chamando a atenção para os custos de transação presentes em qualquer operação do sistema econômico. Os quatro foram laureados com o Prêmio Nobel de Economia, evidenciando o caráter oportuno e atual do pensamento econômico liberal. Dirigindo agora o foco para o caso brasileiro e, num primeiro momento, especificamente para Delfim Netto, arrisco-me a fazer as seguintes considerações. Depois de ter sido secretário da Fazenda no Estado de São Paulo em 1966, assumiu o Ministério da Fazenda em 1967, em pleno regime militar, teoricamente para dar sequência à política adotada por Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos, responsáveis pela condução da economia no governo de Castello Branco. Tanto Bulhões como Roberto Campos são considerados economistas liberais, ainda que durante seus respectivos mandatos, o número de empresas estatais brasileiras tenha praticamente quadruplicado. Delfim Netto sempre nutriu simpatia pelo socialismo fabiano, uma corrente revisionista do socialismo marxista, que apoiava o sindicalismo, os atos fabris, a extensão do voto secreto, as cooperativas de trabalhadores, a regulamentação governamental da indústria, a legislação social e a nacionalização das indústrias básicas. Repudiando as doutrinas de lutas de classe e revolução, os fabianos trabalharam para introduzir reformas significativas, influenciando os líderes governamentais, formando alianças com grupos liberais e promovendo o Partido Trabalhista. Acreditavam que um eleitorado esclarecido, em nome da justiça social, socializaria lenta e pacificamente os meios básicos de produção, passando a administração das indústrias para agências municipais, regionais e nacionais. Em assuntos internacionais, os fabianos eram imperialistas e defenderam o governo britânico na Guerra dos Bôeres e na Primeira Guerra Mundial. Seus personagens mais influentes foram George Bernard Shaw, Sydney e Beatrice Webb, Graham Wallas e H. G. Wells. Na Universidade de São Paulo, Delfim Netto foi um dos principais responsáveis pela introdução dos métodos quantitativos, com ampla utilização da estatística e da econometria na análise econômica, e pela popularização das ideias do economista inglês John Maynard Keynes, considerado por muitos como o maior economista do século XX. A escola keynesiana, por sua vez, ocupa uma posição intermediária entre o liberalismo e o socialismo, acreditando ser necessária uma intervenção parcial do governo. Os principais pilares do keynesianismo foram assim sintetizados por Eduardo Giannetti [1]: 1º) Defesa da economia mista, com forte participação de empresas estatais na oferta de bens e serviços e a crescente regulamentação das atividades do setor privado por meio da intervenção governamental nos diversos mercados particulares da economia; 2º) Montagem e ampliação do Estado do Bem-Estar (Welfare State), garantindo transferências de renda extramercado para grupos específicos da sociedade (idosos, inválidos, crianças, pobres, desempregados etc.) e buscando promover alguma espécie de justiça distributiva; 3º) Política macroeconômica ativa de manipulação da demanda agregada, inspirada na teoria keynesiana e voltada,acima de tudo, para a manutenção do pleno emprego no curto prazo, mesmo que ao custo de alguma inflação. Portanto, com o chapéu de professor e pesquisador, Delfim Netto não pode ser considerado um economista liberal. Permanecendo no comando da economia brasileira até 1974 [2], foi chamado de “pai do milagre”, expressão referente ao acelerado crescimento da economia brasileira de 1968 a 1974. Ele contestava dizendo: “Nunca houve milagres. Milagre é efeito sem causa. É tolice imaginar que o Brasil cresceu durante 32 anos seguidos, começando na verdade em 1950, a 7,5% ao ano, por milagre”. O Brasil viveu de 1966 a 1979 o regime bipartidário, com apenas dois partidos, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que era o partido do governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que era o partido da oposição e reunia, entre outros, economistas ligados à Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). Os analistas e jornalistas, na sua maioria, adotaram a divisão genérica entre os economistas do governo e da oposição respectivamente como monetaristas e estruturalistas. Sendo assim, com o chapéu de ministro do governo militar, Delfim Netto foi tachado de monetarista, o que, a meu juízo, não passa de uma grosseira simplificação. Como deputado federal, eleito sucessivas vezes pelo Partido Democrático Social (PDS) [3], sucessor da ARENA, agremiação que sempre se posicionou contra o Partido dos